sexta-feira, 1 de abril de 2011

Quatro mãos brancas, um céu azul

Céu azul, azul alegria, azul leveza, azul verão. Pássaros cantavam, tons alegres e repetitivos, tons vida de pequenas gargantas, inocentes e felizes. Felicidade quase tangível de uma sacada aberta, meio de tarde de março, nuvens acumulando-se ao longe, vento suave a sorrir. Carros carreando abaixo, buzinas, cantoreios mecânicos de corações metálicos, inocentes e felizes. Mãos brancas, contorcendo-se, apagadas, mudas, gritando por socorro, dor calada de quem sabe. Mãos brancas agarrando o parapeito, desespero e agonia, perfusão escassa daqueles que perderam a inocência e sabem. Cachorros dorminhocos, embaixo dos bancos da praça, sonhando e se remexendo, famintos e satisfeitos em seus sonhos de preás, focinhos focinhentos, inocentes e felizes. Olhos desesperados, ora muito serenos, daqueles que perderam tudo e têm tudo, sabem demais e sabem. Cabelos escuros ao vento, que carrega as lágrimas profundas e muito rasas, doloridas e sem sentimento, lágrimas que sabem. Tudo e nada tocando-se no horizonte com dor e alegria. Vida, dia-a-dia, amor e indiferença. Hino de decência prendia-a ali, pés nos azulejos frios da sacada branca a engolí-los. Hino de decência. Inocência? Perdera-a, como perdera o mundo.
O mundo? Um dia, sorrira a ela. Mas era um dia distante, tão distante que parecia sem sentido, parte de uma vida que secara junto das folhas de sua parreira no outono. Ainda sorria, escarnecendo de seu desajuste. Olhava-a e ria dela, tão gigante em uma casinha de baratas, tão pequena a trombar nas pernas dos adultos. Ria dela como riam, sem dó, todos os inocentes e felizes, que não sabiam. Era antinatural. Não cabia mais ali. Não conseguira encontrar, como todos esperavam que consguisse, um lugar ali, uma cama que não lhe expusesse os pés ou não fosse dura demais. Era cachinhos negros em uma casa de ursos que lhe devoravam a alma com mingau. Não havia ali lugar para ela. Não mais.
Os outros? Desligara-os. Não importava-se mais. Simplesmente não conseguia conviver consigo mesma, presa a uma alma quebradiça e sem brilho. Odiava as fotos de sua sala, momentos e sorrisos congelados que não voltariam mais. Almas que não sabiam, como a sua. Almas que não percebiam. Almas prontas, encaixotadas, felicidade instantânea de mingaus em 3 minutos. Onde estava aquela das fotos? Onde estava? Perdera-se em um caminho longo e desgastante. Sentia-se ingrata, mimada, imbecil. Perdia-se em uma dor tão desajustada quanto ela, sem motivo, razão ou destino. Mas não suportava. Faltava-lhe o mundo.
O mundo? Tinha-o. Tinha tudo. Carinho, dinheiro, inteligência. Família, amigos, cachorros. Estava tudo ali. Tudo? Como ursos a observar a jovem garotinha a engolir veneno, em uma cadeira grande para adultos. Como os pássaros, o vento, as nuvens. Inocentes e felizes.
O mundo? Abandonara-a. Esvaira-se dela, como lágrimas rebeldes, teimosas, que fogem feito labradores amarelos, correndo atrás de bolas. Escorrera de suas mãos pálidas, que agora tremiam, a espera. Deixara-a vazia, oca como uma grande tigela, que antes carregara mingau saboroso, mas agora jazia junto a louças sujas, rodeadas de moscas, pequenos urubus.
A campainha tocou e seus olhos vermelhos correram até a porta. Não precisou abri-la. Ali estava ela, como sempre esperara vê-la. Toda de preto, o sorriso de esqueleto, quente e amigável, mãos de ossos muito ternas e compreensivas. Olharam-se longamente, partilhando a tristeza de um momento que aguardava, suspenso. Deram-se as mãos, brancas, plácidas, agora dois pares de mãos serenas. Os carros aproximaram-se muito rapidamente. Arrependeu-se por um mínimo instante. Deixou de sentir no seguinte. Estava livre. Como os cachorros, os pássaros e o vento. Como a sacada alta que deixara para trás.
Céu azul, azul alegria, azul leveza, azul verão.

2 comentários:

  1. Nossa... que triste... Achei mto agonizante... Sufocante... com um final especialmente triste...

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